Mesmo com a lei garantindo o direito ao aborto legal a qualquer mulher vítima de estupro, o número de meninas com menos de 14 anos que dão a luz em Mato Grosso do Sul supera o de pedidos de interrupção da gravidez. Foram dois pedidos em 2020, contra pelo menos três nascimentos envolvendo crianças com menos de 12 anos.
Tais números levam a questionar o que leva a família destas crianças e adolescentes vítimas de estupro a seguir com a gravidez.
Ausência de informação, demora em descobrir a gestação, logística e até crenças religiosas estão entre alguns dos motivos apontados pela coordenadora do Nudeca (Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), da Defensoria Pública, Débora de Souza Paulino, e pela advogada, Caroline Fernandes Nunes, que levam o direito a não se concretizar na prática.
O que pode parecer questão de detalhes, no entanto, interfere na decisão e pode definir o futuro de quem nem se quer tem como reagir contras estas violações.
Aos 11 anos – Em menos de dois meses, a Polícia Civil registrou dois casos de meninas de 11 anos que engravidaram em decorrência de violência sexual. Em Amambai, distante 359 quilômetros de Campo Grande, o caso foi levado às autoridades no começo de setembro quando a criança estava na 25° semana de gestação. O estuprador era o padrasto e os abusos aconteciam há cerca de um ano.
Na semana passada, caso de estupro envolvendo outra menina de 11 anos foi levado à polícia de Ivinhema, distante 284 quilômetros da Capital. A investigação aponta que um rapaz de 18 anos foi o responsável por engravidar a criança.
Os casos não batem com o número de pedidos de aborto legal entre crianças e adolescentes. De acordo com a SES (Secretaria de Estado de Saúde), apenas duas meninas realizaram o procedimento assegurado por lei no Estado, em 2020.
Um aborto legal foi realizado antes de agosto e outro envolve uma adolescente de 17 anos, portanto, os responsáveis pelas meninas de 11 anos não registraram o pedido até o momento.
Conforme a Saúde, nestes anos, três adolescentes com menos de 12 anos deram à luz em Campo Grande, Juti e Naviraí. O número de casos, no entanto, pode ser ainda maior, já que são classificados como estupro qualquer relação sexual praticada com pessoas menores de 14 anos.
Neste ano, foram 2.262 partos realizados em meninas entre 12 e 17 anos. Até agosto de 2020, 135 meninas de 0 a 14 anos foram estupradas no Estado.
Desinformação, demora e conservadorismo – A coordenadora do Nudeca, da Defensoria Pública de MS, Débora de Souza Paulino, lembra que a demora em descobrir a gravidez em crianças pode impedir a realização do aborto legal, mesmo quando isto possa ser de interesse dos familiares.
“A criança só conta que foi abusada quando a gravidez é descoberta (em muitos deles sendo o abusador alguém muito próximo à família, como padrasto, tio, primo etc), de modo que o tempo de gravidez acaba ficando avançado o que dificulta a realização da interrupção da gestação”, explica.
Conforme a defensora, quando o caso chega para atendimento na Defensoria, por exemplo, a criança ou adolescente já está com mais de 22 semanas. A legislação permite a interrupção até 20 semanas de gestação, ou 22 caso o feto pese menos de 500 gramas.
As famílias atendidas também relatam não recebem a orientação correta dos integrantes da rede de proteção, acerca da possibilidade de interrupção.
Resistência dos servidores e necessidade de logística mais elabora também podem levar a família a abrir mão do direito. “Em alguns casos, inclusive, há relatos de que os profissionais de saúde se recusam a fazer o procedimento, principalmente no interior do Estado, sendo necessário o deslocamento da gestante para esta Capital, para receber o atendimento”, explica.
Questões pessoais, como religiosidade, também interferem na decisão. “Estas acabam optando pela continuidade da gestação, mesmo colocando em risco a vida dessas crianças ou adolescentes”.
A advogada Caroline Fernandes Nunes (Foto: Arquivo Pessoal)
Machismo estrutural – A advogada Caroline Fernandes Nunes cita este e também o machismo estrutural para explicar a discrepância entre o número de abortos legais realizados e o de estupros envolvendo crianças e adolescentes.
“Isto pode decorrer da ausência de informação adequada dos próprios órgãos do sistema de saúde e da rede de proteção à criança e ao adolescente, de crenças religiosas enraizadas no núcleo familiar, que não admitem o aborto em nenhum caso e, até mesmo, do machismo estrutural que ainda nos permeia e impõe à mulher que ela deve cumprir um papel na sociedade: procriar e ser mãe, ainda que a gravidez tenha resultado de um ato criminoso que viole a dignidade da pessoa, o que é ainda mais grave quando se trata de criança e adolescente”, analisa a advogada.
A orientação da profissional é de, caso a vítima e sua família tenham alguma dúvida sobre a legalidade do aborto ou sofram algum estigma no atendimento realizado pelos profissionais da saúde, que busquem um advogado para que se sintam mais seguras e sejam devidamente auxiliadas, caso necessário.
A Defensoria Pública também está a disposição das famílias. A instituição acompanha e adota todas as providências para auxiliar a família quanto ao exercício de seus direitos, principalmente, garantindo o atendimento de saúde adequado.