Há mais de um ano sendo rastreada em seu hábitat por um colar tecnológico, o animal que virou símbolo da resiliência pantaneira e do descaso da política ambiental do governo, a qualquer momento, estará livre do dispositivo. O fim do monitoramento marca uma vitória de pesquisadores, voluntários, ambientalistas e da própria onça. Da morte iminente à beira de um rio, o animal foi salvo e pôde oferecer informações preciosas sobre as condições do Pantanal após os incêndios.
O colar foi programado para enviar por satélite a posição exata do felino a cada hora. Após 39 dias sendo tratada de ferimentos que deixaram suas patas em carne viva, Ousado foi devolvido ao Pantanal em 20 de outubro do ano passado. Desde então, o colar envia por satélite a posição exata da onça a cada hora para os computadores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A programação de 400 dias de rastreio já foi vencida. O colar ainda não caiu porque são comuns alguns lapsos na contagem do prazo em razão de falhas no sinal de GPS. O dispositivo custa cerca de 3 mil dólares e, a depender do local em que cairá, será recuperado na mata para ser reutilizado em outros animais no futuro.
Ao longo de mais de um ano, os dados gerados a partir do deslocamento do Ousado possibilitaram um conhecimento específico sobre o comportamento da onça sobrevivente e sobre o Pantanal. “Conseguimos ver o comportamento e comparar com outros machos da espécie. Todos os parâmetros estão dentro do padrão. Foi acertada a decisão de o soltarmos no mesmo lugar em que ele foi resgatado. Podemos dizer que foi um sucesso todo o procedimento de resgate, de tratamento e de soltura”, afirma Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), do ICMBio.
As descobertas serão usadas para publicações científicas de pesquisadores ligados à conservação do Pantanal. As informações preliminares permitem algumas conclusões positivas. A primeira delas é a de que Ousado manteve como “área de vida” um território com tamanho muito semelhante ao esperado para uma onça macho da região. “Os dados nos mostram que o território do Ousado se mostrou equivalente ao território de uma onça-pintada em situação normal. Mesmo após o incêndio, não houve necessidade de ele aumentar seu território pois havia recursos suficientes para ele se manter. É um bom indício de que o Pantanal mostrou resiliência, manteve o número de presas e esse animal não precisou aumentar seu território”, afirmou Fernando Tortato, pesquisador da ONG Panthera, que tem acesso aos dados de satélite.
Ousado vive em uma área de aproximadamente 149 quilômetros quadrados localizada entre o Parque Encontro das Águas e as fazendas Jofre Velho e São Bento, na região do município de Poconé (MT). Caminha entre 2 e 3 quilômetros diariamente. Vez ou outra, atraído por fêmeas no cio, faz jornadas dez vezes mais longas. É um namorador, conta a guia ambiental Eduarda Fernandes, a Duda. “O Ousado é responsável por boa parte das crias que tivemos em 2021. É um macho jovem que está conquistando território e por consequência acasalando com muitas fêmeas”, diz a garota de 22 anos, líder da expedição que providenciou o resgate.
Resgate rende fama
Essa onça virou uma estrela no Pantanal. Os turistas querem saber do Ousado, nome dado por ribeirinhos, e se regozijam quando o avistam nos remansos com o apetrecho tecnológico no pescoço. Desde que voltou ao seu hábitat, foi encontrado ao menos 20 vezes por grupos de turistas e biólogos. Os guias locais foram orientados a contar aos turistas a saga do animal, uma história que começou a ser contada em 12 de setembro de 2020.
Durante a cobertura dos incêndios, a reportagem do Estadão seguiu informações de nativos e localizou a onça com queimaduras à margem do Rio Corixo Negro. Uma rede de voluntários foi acionada e realizou o resgate. O passo a passo foi registrado em textos e imagens, do disparo da zarabatana com o tranquilizante até a colocação do bicho no barco que o levaria até uma base de apoio. Mais tarde, o tratamento veterinário moderno que recebeu no NEX No Extinction, uma ONG de Goiás localizada a 1,2 mil quilômetros do Pantanal. Ao menos 17 milhões de vertebrados não tiveram a mesma sorte e morreram por consequência direta dos incêndios, segundo estudo realizado por mais de 30 pesquisadores de órgãos como Embrapa Pantanal e Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
O governo do Mato Grosso considera promissora a demanda turística para o primeiro trimestre deste ano, com o Pantanal “voltando a ter geração de emprego e renda”. Após as queimadas, os números caíram em 2021, especialmente no segundo semestre, com as elevadas taxas de contaminação pelo novo coronavírus. “Mesmo diante de um cenário de instabilidade na saúde do País, com o surgimento de outras variantes da covid-19, o turismo na região pantaneira vem se sobressaindo e buscando retornar à atividade de forma intensa sempre tomando os cuidados necessários orientados pelo Ministério da Saúde”, informou o governo mato-grossense.
Especializada em receber estrangeiros interessados em conhecer as paisagens pantaneiras, Duda conta também que os brasileiros estão descobrindo a região após as imagens das queimadas rodarem o mundo. “Até 2020 eu não trabalhava com clientes brasileiros. Depois de 2020, houve um ‘boom’ de brasileiros interessados. E muitos chegavam dizendo que viram as queimadas na TV, tinham medo de acabar tudo e queriam conhecer o Pantanal”, frisou.
É tempo de cheia no Pantanal brasileiro. As planícies outrora devastadas por um fogo que não se via desde os anos 1970 deram lugar a imensos alagados. A paisagem pouco lembra as queimadas que se espalharam na vegetação seca. As consequências dos incêndios de dois anos atrás, no entanto, ainda estão ali. Uma grande quantidade de matéria orgânica morta ficou depositada, o que pode tornar o próximo fogo mais devastador.
“Com a chegada das chuvas, a vegetação do Pantanal ficou verde novamente, o que pode dar uma falsa impressão de que o pesadelo dos incêndios florestais na região é assunto do passado. Porém, isso é uma forma equivocada de se ver o problema. Não tenhamos dúvida alguma: incêndios florestais ocorrerão com a mesma certeza da sazonalidade climática, e junto ao período de estiagem intenso, como fora previsto cientificamente através de modelos matemáticos, inevitavelmente aparecerão, e quando eles chegarem, os seus efeitos poderão ser mais devastadores de que essa última vez”, destaca Cátia Nunes da Cunha, doutora em Ecologia e Recursos Naturais e pesquisadora da UFMT.
“Quando falamos que o Pantanal é resiliente, não podemos colocar tudo na mesma caixa. Não tem tantas espécies adaptadas ao fogo. Uma coisa é área que queima em manchas. Nas manchas não queimadas tem possibilidade de recolonização Mas o que vimos em 2020 foram queimadas de grande extensão”, complementou Viviane Layme, professora e pesquisadora do departamento de Botânica e Ecologia da UFMT.