BRASÍLIA — Rompido com o presidente Jair Bolsonaro, de quem cobrou retratação em carta pública, o almirante Antonio Barra Torres, atual diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), chegou ao cargo com um perfil alinhado ao do chefe. Médico militar da reserva, ele deixou posto de chefia na Marinha para atuar como indicado de Bolsonaro, de quem se dizia amigo, no órgão regulatório. Desde então, percorreu uma trajetória de afastamento, marcada por seguidos embates com o Planalto, até o rompimento.
A nota de Barra Torres, divulgada no sábado, 8, foi além e revelou um enfrentamento público. Ele cobrou retratação do presidente, que questionou os “interesses” de integrantes da Anvisa em aprovar a vacinação de crianças contra covid-19. Na semana passada, Bolsonaro também afirmou que a agência “virou outro Poder no Brasil” e que seus técnicos são “pessoas taradas por vacinas”.
“Se o senhor dispõe de informações que levantem o menor indício de corrupção sobre este brasileiro, não perca tempo nem prevarique, senhor presidente. Determine imediata investigação policial sobre a minha pessoa, aliás, sobre qualquer um que trabalhe hoje na Anvisa, que, com orgulho, eu tenho o privilégio de integrar”, disse Barra Torres na nota.
Barra Torres deu tom desafiador e pessoal à nota, assumindo para si uma insinuação que Bolsonaro fez genericamente à Anvisa. Na assinatura e no texto, destacou o cargo militar de alta patente e o elo com a Marinha do Brasil, reproduzindo um comportamento comum nas Forças Armadas de tentar preservar a imagem pública da instituição e de sair em defesa dos “comandados”, o que tem lhe rendido apoio internamente na agência.
A carta expõe de maneira clara a mudança na relação antes de amizade que dizia ter com Bolsonaro. O contra-almirante foi escolhido ainda em 2019 para ocupar uma das diretorias vagas na Anvisa – naquela época, antes de fechar o acordo com o Centrão, era comum que o presidente “convocasse militares” como seus indicados.
Com perfil conservador, foi aprovado por ampla maioria de votos (61 a 3) no Senado, sendo nomeado em julho. Cinco meses depois, assumiu como chefe substituto.
Alinhamento
Quando veio a pandemia, Barra Torres agiu de forma alinhada às posições bolsonaristas – ao menos no começo. Ele chegou a participar, sem máscara, de um ato antidemocrático, que pregava o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Um ano depois, em maio de 2021, o almirante disse à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, no Senado, se arrepender do episódio.
Na ocasião, afirmou ainda que as críticas de Bolsonaro às vacinas iam “contra o que preconiza a ciência” e que sua conduta era diferente. “Destarte a amizade que tenho pelo presidente, a conduta do presidente difere da minha.”
Antes de ser efetivado no comando da Anvisa, em outubro de 2020, o militar servia ao Planalto como uma espécie de contraponto ao então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, demitido ainda nos primeiros meses da pandemia. No dia 4 de março de 2020, em audiência realizada no Congresso, Barra Torres minimizou a gravidade da pandemia.
“É importante citar todo o esforço que há para que não se dissemine o pânico”, disse aos parlamentares. Poucos dias depois, infectados e mortos por covid-19 no País aumentaram exponencialmente.
Sete meses depois, o Senado confirmou a indicação do militar para comandar a agência reguladora. Sem a possibilidade de ser demitido, por exercer mandato de cinco anos, Barra Torres passou a se distanciar do presidente e a defender a “autonomia da agência”, fortalecendo-se e com a área técnica do órgão.
Divergências
A partir de janeiro de 2021, as divergências ficaram mais claras. A Anvisa deu aval para o uso da Coronavac mesmo com a discordância de Bolsonaro. Barra Torres blindou a agência de interferências e fez uma transmissão ao vivo das discussões técnicas, num domingo, quando foi aprovado o uso emergencial da vacina chinesa, trazida ao País por iniciativa do governador de São Paulo, João Doria, presidenciável do PSDB.
Ao longo de 2021, o afastamento se concretizaria, aprofundado pela CPI. Em depoimento aos senadores, em maio, Barra Torres confirmou que houve uma tentativa política no Planalto de inserir recomendação da cloroquina para tratamento da covid-19, o que não tem eficácia científica. Ele disse ter se posicionado contra.
Em outubro, Barra Torres rebateu a declaração falsa de Bolsonaro de que os imunizantes poderiam causar aids. E, em novembro, a Anvisa recomendou a cobrança de vacinação contra covid-19 para ingresso de viajantes no País, medida sanitária amplamente adotada internacionalmente em aeroportos, mas que o presidente rejeita.
O rompimento final veio em dezembro. Numa live, depois de a Anvisa aprovar a vacinação de crianças entre 5 e 11 anos com a Pfizer, Bolsonaro se mostrou contrariado e instigou a exposição pública dos nomes dos técnicos envolvidos na decisão, o que gerou uma onda de ameaças aos diretores da agência. Barra Torres vinculou o presidente ao incentivo às perseguições e cobrou proteção policial e investigação. Bolsonaro disse que o diálogo estava encerrado. “Fechou o diálogo. Impossível conversar mais com o presidente da Anvisa”, afirmou o presidente, em 30 de dezembro.
Procurada pelo Estadão, a Presidência da República não se pronunciou sobre a carta de Barra Torres a Bolsonaro. O chefe da Anvisa também não quis se pronunciar.
Aos 57 anos, Antonio Barra Torres é formado em medicina pela Fundação Técnico-Educacional Souza Marques, fez residência em cirurgia vascular no Hospital Naval Marcílio Dias. Entrou na Marinha em 1987 e chegou a contra-almirante, o terceiro posto mais alto, em 2015. Passou à reserva em 2019. Foi instrutor na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (RJ), diretor do Centro de Perícias Médicas da Marinha e do Centro Médico Assistencial da Marinha.