Uma menina de 11 anos estava sendo mantida pela justiça em um abrigo, longe da família, há mais de um mês para evitar a realização de um aborto legal. O caso, divulgado pelo The Intercept nesta segunda-feira (20/6), mostrou a questionável postura da juíza Joana Ribeiro Zimmer e da promotora Mirela Dutra Alberton, que durante a audiência induziram a garota, que foi vítima de um estupro, a não realizar o aborto, garantido por lei.
Em nota enviada ao Correio, o Ministério Público de Santa Catarina sinalizou que assim que tomou conhecimento da situação, a 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Tijucas ajuizou ação “pleiteando autorização judicial para interrupção de gravidez assistida, segundo critérios definidos pela equipe médica responsável.”
Sobre a decisão de manter a menina em um abrigo, o MP de SC disse que analisou a decisão da promotora, mas que o pedido não foi realizado em razão da gravidez, e sim “com o único objetivo de colocá-la a salvo de possíveis novos abusos, principalmente enquanto não é finalizada a investigação criminal que poderia indicar se o estupro ocorreu ou não no ambiente familiar”.
Na nota, o MPSC disse ainda acompanhar o caso visando a proteção da vítima. “Por fim, lembramos que o processo segue protegido por sigilo previsto em lei. Sigilo, aliás, que visa unicamente proteger a imagem e a integridade de uma criança vítima de crimes sexuais, indevidamente exposta à opinião pública”.
“Você suportaria ficar mais um pouquinho?”
De acordo com reportagem publicada pelo The Intercept, a menina de 11 anos estava sendo mantida pela Justiça de Santa Catarina em um abrigo, longe da família, há mais de um mês, para evitar que um aborto legal fosse realizado.
De acordo com a reportagem, dois dias após a descoberta da gravidez, em maio deste ano, a criança – à época com 10 anos – foi levada pela mãe ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago para realizar o aborto. Mas a equipe médica se recusou a realizar o procedimento, argumentado que, pelas normas do hospital, a interrupção da gravidez só é permitida até as 20 semanas de gestação. De acordo com a reportagem do The Intercept, a menina descobriu a gravidez quando estava com 22 semanas.
O Correio consultou a jurista e doutora em Direito, Estado e Constituição Soraia Mendes, especialista em direitos das mulheres, que informou que o entendimento é o de que, nos termos da Convenção de Belém do Pará, todas as gestações de meninas menores de 14 anos devem ser consideradas produto de violência sexual. “Os Estados – como o Brasil – devem garantir a essas vítimas atendimento especializado e acesso à interrupção da gravidez em condições seguras e livres de qualquer forma discriminação”, explica.
Além disso, de acordo com o Código Penal, é permitido o aborto em caso de violência sexual, sem impor qualquer limitação de semanas da gravidez e sem exigir autorização judicial.
Após o procedimento ter sido vetado pelo hospital, mãe e filha entraram com o pedido na Justiça. Porém, em vez de conceder a autorização, a juíza Joana Ribeiro Zimmer induziu a criança a manter a gravidez. Além disso, a pedido da promotora Mirela Dutra Alberton, do Ministério Público catarinense, a menina foi retirada do convívio da família e levada para um abrigo.
A princípio, a decisão visava proteger a criança do agressor, mas quando foi despachada no dia 1º de junho, a juíza admitiu que a medida também visava impedir o aborto do feto. “O fato é que, doravante, o risco é que a mãe efetue algum procedimento para operar a morte do bebê”, escreveu no documento.
Em audiência judicial, realizada no dia 9 de maio, a juíza propôs que a criança mantivesse a gravidez por mais algumas semanas. “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questionou a magistrada para a criança.
A promotora do caso também propôs à menina que ela mantivesse a gravidez para dar alguma chance do feto “sobreviver”. “Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele… Ele vai nascer chorando, não [inaudível] medicamento para ele morrer”, exposto o vídeo divulgado pelo The Intercept.
Soraia Mendes lembra que não é a primeira vez que um caso desse tipo ocorre no Brasil. Ela relembra o caso de 2020, quando uma criança de 10 anos, estuprada pelo tio, acabou tornando-se alvo de perseguições por tentar realizar um aborto legal. Até mesmo a ministra da Mulher da época, Damares Alves, se envolveu no caso, se posicionando contra o procedimento, que é garantido pela lei.
Sobre o caso da menina de Santa Catarina, ela acrescenta que ele tomou contornos ainda mais graves com a revelação de que “a criança estaria sendo mantida por ordem da justiça catarinense em um abrigo por mais de um mês para impedi-la de ter acesso ao aborto legal”. “A conduta da magistrada e da promotora de Justiça não são somente inaceitáveis e/ou passíveis tão só de alguma reprimenda a ser aplicada pelo CNJ. A julgar pelas informações contidas na reportagem, o que ocorreu não foi perverso somente em termos retóricos. Foi tortura. Submeter uma criança, em uma audiência, à uma sessão de “convencimento” na qual era imposta a ela a culpa pela “morte” do suposto “bebê” (diga-se, do fruto do crime de estupro de que ela foi vítima) configuram atos que precisam ser investigados criminalmente”, diz a advogada especialista em direitos das mulheres.
A especialista acrescenta que as ações da juíza Joana Ribeiro Zimmer e da promotora Mirela Dutra Alberton extrapolaram “o limite de atuação judicial inadequada, pois ao imporem (mais) dor e sofrimento à menina já violada, desconsideraram que a maternidade infantil é incompatível com o princípio da proteção integral preconizado na CF/88, no ECA e na legislação Internacional protetiva dos direitos das crianças. Elas, acima de tudo, praticaram em tese crime de tortura”, diz.