Ele faz parte de uma comunidade pantaneira que foi expulsa de suas terras e chegou a ser considerada extinta pelo Serviço de Proteção ao Índio (atual Funai), nos anos 1950. Vicente Manoel da Silva acha que tem 82 anos, vive em uma área isolada à beira do rio São Lourenço, no Pantanal sul-mato-grossense, e é provavelmente um dos homens mais solitários do País, a se considerar um traço de sua história. Ele é o único indígena nativo a falar com fluência a língua de sua etnia, o guató.
A partir da década de 1940, a terra indígena da Ilha Ínsua, no território de Corumbá (MS), passou a ser ocupada por fazendas de gado, o que obrigou os guatós a deixar a área. Eles se espalharam por várias cidades do Mato Grosso do Sul e Mato Grosso e se estabeleceram nas periferias das capitais Corumbá e Cuiabá. Alguns atravessaram a fronteira para o lado boliviano.
Com a dispersão, o idioma guató foi se perdendo. Os “índios canoeiros”, como também são conhecidos, passaram a se comunicar em português, e as novas gerações tiveram pouco contato com a língua nativa. Há relatos de muitas mulheres da etnia que se casaram com não indígenas que as proibiam de falar o idioma ou de ensiná-lo aos filhos.
Os pais e tios de Vicente Guató, como é chamado, permaneceram na região. Toda a família – inclusive ele, ainda criança – morou e trabalhou em fazendas.
“Desde pequeno eu trabalhava nas fazendas de Nhecolandia, Santa Fé e muitas outras; mexia com gado ou fazia serviços de ferramentaria”, conta ele, que nunca foi à escola, não sabe ler nem escrever. Aprendeu português no convívio com crianças das propriedades por onde passou.
Vicente afirma ter 82 anos, mas confessa não saber em que ano nasceu. “Só sei que foi no dia 10 de maio.” Um registro tirado quando tinha cerca de 30 anos, seu único documento, traz uma data fictícia de 1946. Pelo RG, ele teria 76 anos. Mas datas não têm muita importância para os guatós que, segundo ele, preferem se orientar “pelo rumo”.
Vicente não sabe quando chegou à área em que vive atualmente, uma fazenda abandonada na região do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense. Presume-se que foi há mais de 40 anos, pois ele conta que, na época, na área do parque, criado em 1981, havia apenas fazendas, e ele trabalhou em uma delas.
Na ilha, construiu um casebre – hoje de tijolinhos, barro e com alguns remendos de cimento –, onde viveu com a mãe Júlia Caetano até 2012, quando ela faleceu, aos 111 anos. Era considerada a índia mais velha do Brasil. Dois tios moravam por perto, formando o pequeno núcleo familiar de Vicente, que só se comunicava em guató. “Minha mãe não sabia quase nada de português”, conta ele.
Os tios também já faleceram. Vicente chegou a ter uma companheira que não pertencia à etnia guató, mas ela permaneceu pouco tempo na ilha e foi embora. “Não quis ficar aqui”, se limita a explicar. O pai de Vicente, Manoel, morreu quando ele era criança. Seus três irmãos mais novos tomaram rumos diferentes: André vive em Corumbá, Félix “está desaparecido” e Damião foi para a aldeia Uberaba, na Ilha Ínsua, recuperada duas décadas depois pelos guatós e demarcada, e lá morreu.
Vicente planta mandioca, milho, cana e banana quando ganha mudas e sementes. “Agora só tem mandioca; a seca acabou com o milho e a cana, e a banana não vai para frente”, lamenta. Ele pesca e caça para sua subsistência e prepara tudo em uma fogueira rodeada por pedras no quintal ou em um fogão a lenha dentro da casa, onde dorme numa rede.
Viagem rio acima
Para chegar ao local onde Vicente mora são 180 km de barco voadeira partindo do centro de Corumbá e seguindo pelos rios Paraguai e São Lourenço, trajeto que demora 6 horas. No caminho, a floresta ainda exibe marcas do incêndio de 2020, o maior da história do Pantanal, com troncos de árvores queimados ainda resistindo à queda.
Embora em menor quantidade após o desastre, a viagem é acompanhada por várias espécies de pássaros como tuiuiú, garça-moura, biguá e tucano. Às margens do rio há jacarés e ariranhas e, nas árvores, macacos bugio. Com sorte, é possível até cruzar com uma onça-pintada bebendo água ou atravessando o rio.
Vicente recebe a reportagem do Estadão em cima de uma mureta que protege seu casebre das águas no período de cheias. Abana a mão dando boas vindas e corre para dentro da casa, onde veste rapidamente uma calça por cima da bermuda e retorna para a conversa, que ocorre num banco de madeira embaixo de árvores que amenizam o calor de mais de 30 graus.
Tudo foi construído por ele: a casa, os bancos, os barcos de pesca (um deles recebeu motor, pois Vicente já não tem força para remar por longos trechos), as ferramentas para seus trabalhos e para a caça, como uma zagaia (lança) e violas de cocho – instrumento musical típico da região pantaneira feito a partir de um bloco maciço de madeira que ele costumava vender, mas as encomendas pararam.
Caça capivaras e jacarés – animal do qual aproveita a carne e a banha para comer e a pele para fazer uma espécie de bandeja que usa para colocar alimentos. Com a chegada da eletricidade à ilha, gerada por energia solar, Vicente conseguiu uma geladeira e pode conservar peixes e carnes por mais tempo.
Embora tímido, ele conta em sua língua natal que todos os dias pega a canoa, sai para pescar e, quando retorna, ascende o fogo e frita ou cozinha os peixes, refeição que compartilha com cerca de 30 gatos que são suas únicas companhias. “Também tinha alguns cachorros, mas a onça comeu”, informa, acrescentando que “também caçava, matava e vendia o couro de onças, que valia muito, mas agora não pode mais mexer com elas.”
A caça está proibida no Brasil desde 1967, mas a onça-pintada, típica do Pantanal, está na lista de espécies em risco de extinção, assim como a ariranha.
Ensino do idioma
Vicente cita várias palavras em guató e pede aos visitantes que as repitam. “Ele acha que só faz sentido falar a língua se estiver ensinado alguém”, diz o antropólogo e linguista Gustavo Godoy que, junto com a esposa Kristina Balykowa, também linguista, estiveram com Vicente várias vezes. Foram eles que conseguiram descrever o nome de Vicente em guató – Djyguapo, que significa barulho da asa do cabeça-seca (pássaro da região).
O casal desenvolve amplo trabalho de revitalização linguística que inclui o idioma guató e que começou em 2016 como parte de um projeto de dissertação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Seu Vicente fazia ‘provas’ com a gente para ver se tínhamos aprendido as palavras”, conta Godoy.
Além de Vicente, que se tornou um “consultor” para o casal, outra falante nativa era Eufrásia Ferreira, moradora de Corumbá falecida no ano passado. Há outras pessoas com elevado conhecimento do idioma, como o irmão de Vicente, André, e Dalva Maria de Souza Ferreira, também moradora de Corumbá, casada com um guató não falante e que aprendeu a língua com a sogra e amigos. Ambos, no entanto, não são fluentes.
Há ainda os “falantes de herança”, conforme classifica Godoy, aqueles que aprenderam com os pais, falavam quando crianças, mas, por ficarem muito tempo sem se comunicar pelo idioma, se esqueceram ou não têm fluência. Também há os “falantes por transmissão”, que estão aprendendo na escola indígena e já sabem palavras, números e algumas frases.
“Mas nativo e com fluência, o mais competente é o seu Vicente”, afirma Godoy. “Ele é sem dúvida o único que domina a língua.” Além do trabalho de Godoy e Kristina, de realizarem oficinas com professores sobre regras gramaticais e vocabulário, há um movimento da própria etnia em recuperar o idioma. Na aldeia Uberaba, o ensino faz parte do currículo.
‘Não quero viver em outro lugar’
Vicente só sai da ilha a cada dois meses para receber a aposentadoria em Corumbá e fazer algumas compras, como de arroz e sal. Sem rádio ou TV, fica sabendo das notícias, como a da chegada da pandemia de covid, por pessoas que passam de barco pelo local ou em visitas esporádicas que recebe dos responsáveis pelo Parque Nacional e da ONG Instituto Homem Pantaneiro (IHP).
Já foi convidado diversas vezes a morar em Corumbá, onde vivem vários guatós, ou na aldeia Uberaba (que fica a cerca de 2h de barco de onde ele mora), mas não aceita sair do seu pedaço de chão. “Eu sou daqui mesmo; não quero viver em outro lugar. Não gosto de ficar sozinho, mas fazer o que?”
Seu Vicente prefere se entregar à solidão em troca de liberdade, de permanecer na terra que considera sua, onde enterrou a mãe e um tio e onde mantém as tradições dos seus ancestrais. Se sente feliz em ajudar a nova geração a se interessar pelo idioma, mas lamenta não ter com quem conversar em sua língua nativa. “Todos com quem eu falava já morreram.”
Por Cleide Silva/ Estadão