Artigo: O Pantanal e a história do povo Guató

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  • Post publicado:1 de agosto de 2022
  • Por: Jorge Eremites de Oliveira e Zaqueo Souza Ferreira

Em temporalidades muito longínquas, situadas em dimensões cosmológicas, havia uma comunidade Guató estabelecida na área onde atualmente está localizada a lagoa Gaíva, fronteira entre o Brasil e a Bolívia. Ali era um lugar seco e não uma grande baía, termo usado regionalmente para designar lagos e lagoas de todo tipo.

Certo dia algumas mulheres foram buscar água numa nascente situada nas proximidades de suas casas. Ao chegarem lá avistaram um preá branco, criatura jamais vista por aquelas paragens, chamado de meki na língua mãe e conhecido como “coelho”.

Ao regressarem à comunidade e tão logo anoiteceu, os adultos foram conversar ao redor do fogo. Foi quando elas contaram sobre o ocorrido. Um menino ouviu tudo atentamente e, na manhã seguinte, bem cedo, foi até lá ver o bicho. Levou consigo arco e flecha. Ao avistar o preá branco, desferiu-lhe uma flechada certeira no peito.

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Aterradinho do Bananal, fotografado em 2017 por Jorge Eremites de Oliveira (TI Baía dos Guató, Barão de Melgaço-MT).

Antes de desfalecer o “coelho” disse ao jovem que não era um animal, mas o dono daquela água. Anunciou que da nascente viria muita água, mas tanta que inundaria quase toda a região. Seria a punição à maldade que recebera em retribuição à bondade de oferecer água para saciar a sede das pessoas. Por conta disso quem fosse mau iria morrer afogado e quem fosse bom deveria buscar abrigo seguro no cume dos morros.

Assim que o preá morreu começou a emanar muita água do lugar e a terra começou a tremer. Era grande o som da água a jorrar e borbulhar. Em pânico todo mundo começou a correr para se salvar. As pessoas más corriam em direção às morrarias, mas caiam ao chão por conta dos tremores da terra e foram levadas pela inundação. Muitas pessoas boas correram e alcançaram o cume dos morros da Ilha Ínsua e lá ficaram a salvo.

Depois disso as águas baixaram até certo ponto, mas jamais a região voltou a ser como outrora. O local onde a comunidade morava foi transformado na baía Gaíva e surgiu na região um mundo das águas, o Pantanal, batizado de Guadakan no idioma nativo.

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Francolina Rondon, popular “Dona Negrinha”, já falecida, fotografada em 1928 e 1998 por Max Schmidt e Jorge Eremites de Oliveira, respectivamente, guardiã das histórias e cosmologias do povo Guató

Os sobreviventes tornaram-se hábeis canoeiros e ali continuaram a viver. Logo aprenderam com o povo Matchubé, presente em sua mitologia, a construir aterros ou marabohó, que são elevações artificiais do terreno, feitas de terra e outras coisas. Em reciprocidade os Guató ensinam-lhes as técnicas de produção e uso da canoa feita do tronco de árvores.

Por conta do ocorrido os antigos aprenderam e passaram a ensinar aos seus que tudo tem um dono no Pantanal: rios, baías, morros, corixos ou canais que conectam cursos d’água, plantas, peixes e outros animais etc. Os donos são seres não-humanos, sobrenaturais ou divinos que devem ser respeitados e exigem uma conduta ética por parte dos canoeiros, para que ali todos possam viver em equilíbrio com os recursos por eles oferecidos aos humanos. Ao quebrar suas regras, como navegar em silêncio pelas águas da Gaíva ou pescar e caçar apenas o que precisam para sobreviver, punições serão proferidas aos homens e às mulheres.

Por meio dessa cosmologia é possível compreender que a história dos povos originários do Pantanal ou Guadakan, também chamado de Chaco em quéchua e de Êxiva no idioma terena, não tem início em 1492 ou 1500. Está constituída por complexas trajetórias que começam há, pelo menos, 8.400 anos atrás. Pode ter início há mais tempo, entre 11.000 e 10.000 anos, quando a planície passou a apresentar feições ecológicas semelhantes às conhecidas hoje em dia.

Durante o tempo geológico do holoceno, quando o clima do planeta passou a ser mais quente e úmido, o Pantanal tornou-se um bioma com expressiva biodiversidade. Foi quando ali se estabeleceram as primeiras populações humanas, como os antigos canoeiros e construtores de aterros de que os Guató entendem descender.

Exemplo disso são a edificação de milhares de aterros, o contínuo manejo agroflorestal e a manutenção, correção ou construção de corixos e baías. Não por acaso existem depressões do terreno nas adjacências dos aterrados, apresentadas sob forma de lagoas temporárias que representam o negativo topográfico de onde foi retirada terra à construção das estruturas monticulares.

Atualmente a tradição milenar de construir e ocupar aterros é mantida por famílias guató no Brasil. São lugares constituídos de sedimentos, conchas de caramujos, ossos de animais e fragmentos de artefatos, dentre outras coisas. A depender das necessidades situacionais podem ser construídos basicamente de terra, galhos e folhas de árvores. Também servem como locais para o sepultamento dos parentes. São implantados em diferentes lugares: margens de rios; ilhas lacustres e fluviais; interiores e margens de baías temporárias e permanentes; ribanceiras de corixos; campos alagáveis onde assumem a feição de ilhas de vegetação; etc. Os mais antigos são elevações de terra preta favoráveis ao cultivo e manejo de plantas, à presença de animais e ao estabelecimento das famílias. Costumam ter palmeiras acuri ou midji em suas bordas, cujas raízes protegem os lugares da ação das águas.

No começo do século XVI o Pantanal era um mosaico de muitos povos indígenas. Comunidades estabelecidas ao longo dos grandes rios foram registradas em fontes produzidas a partir da década de 1540, quando expedições espanholas atingiram a Alto Paraguai e diversas populações são mencionados por apelidos que nem sempre correspondem a diferentes etnias.

As terras baixas da planície de inundação, que possuem relevo de baixa declividade, eram majoritariamente ocupadas por populações canoeiras, como os Guató e os antigos Payaguá, povo de matriz linguística guaikuru. As terras altas, como os planaltos residuais de Urucum e Amolar, e outros pontos elevados, eram o território preterido por populações de matriz linguística aruák, guaikuru, guarani e zamuco. A partir do século XVIII outros povos ali buscaram se instalar, como os Bororo ou Boe.

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Terras indígenas homologadas e em processo de homologação na porção brasileira do Pantanal até o ano de 2015, incluindo as TIs Guató e Baía dos Guató.

Na cosmologia dos Guató consta que o primeiro branco a chegar ao Pantanal estava perdido, ferido e faminto. Foi bem recebido e tratado, e com eles permaneceu até se recuperar. Depois decidiu ir embora e mais tarde regressou com outros brancos para lhes fazer mal. Nas origens, portanto, os antigos europeus são apontados como humanos ambiciosos que costumam retribuir o bem com o mal.

O século XVII marca o fracasso dos espanhóis em anexar grande parte da bacia do Alto Paraguai a seus domínios. O insucesso é percebido com o colapso do povoado de Santiago de Xerez, em 1632, e da missão jesuítica de Nuestra Señora de la Fe del Taré, em 1659.

No século XVIII os bandeirantes paulistas, portugueses e aliados começaram a explorar ouro de aluvião no vale dos rios Cuiabá e Coxipó, em Mato Grosso. O momento inaugura outra situação histórica, marcada conflitos armados, epidemias, escravidão, estabelecimento de povoados coloniais, fortificações militares etc.

Em face das disputas entre Espanha e Portugal pela região, os Guató aliaram-se aos lusitanos e luso-brasileiros, e protagonizaram ações para assegurar que vastas extensões do Pantanal fossem anexadas ao território nacional do Brasil. Durante a guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), por exemplo, enfrentaram as tropas invasoras e participaram da Retomada de Corumbá, em 1867, cidade portuária dominada por forças paraguaias desde janeiro de 1865. Anos depois, da década de 20 à de 70 do século XX, passaram por um doloso processo de invisibilidade e foram dados como extintos. O período é marcado por várias formas de violência: exploração do trabalho de forma análoga à escravidão, diáspora, esbulho e transformação de grande parte do território ancestral em fazendas de gado e áreas de preservação etc.

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Com a (re) democratização do Brasil os canoeiros conquistaram o reconhecimento étnico nos anos 1970, mas ainda hoje lutam contra a invisibilização. Sua população deve girar ao redor de, pelo menos, 5.000 pessoas, embora a maioria configure como “pardos” e “ribeirinhos” nos censos oficiais. Possuem duas terras indígenas (TIs) demarcadas: TI Guató (Corumbá-MS) e TI Baía dos Guató (Barão de Melgaço-MT). Outras áreas, como TI Barra do São Lourenço, na divisa entre os dois estados, aguardam a regularização.

A história aqui apresentada não faz parte da trama da novela Pantanal, produzida nos anos 1990 pela antiga TV Manchete e agora refilmada pela Globo, mas precisa ser conhecida para que as trajetórias dos povos originários não sejam reduzidas à saga dos Leôncio e Marruá.

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Terra indígenas demarcadas, aterros e outros assentamentos Guató no Pantanal.