O Eternauta, série argentina que estreou com força na Netflix, surge como um raro e necessário respiro para quem anda cansado das fórmulas norte-americanas da ficção científica. Ambientada em uma Buenos Aires completamente subvertida por uma nevasca mortal fora de época, a produção — protagonizada pelo consagrado Ricardo Darín — propõe um mergulho corajoso em temas como colapso social, sobrevivência e humanidade em meio ao caos.
Catástrofe no verão portenho
A série inicia sem cerimônias: Juan Salvo (Darín), homem comum cercado de amigos e de uma vida pacata, é jogado de súbito em um cenário apocalíptico quando uma estranha nevasca atinge Buenos Aires em pleno verão. Mas a neve aqui não é metáfora — é letal. Cada floco que toca a pele significa morte quase imediata. Isolados, Salvo e seus amigos precisam entender o que está acontecendo, enquanto tentam resistir ao frio e à confusão.
Logo a missão de Juan deixa de ser apenas sobreviver: ele precisa encontrar sua filha, cruzando uma cidade congelada, deserta e hostil. O que começa como um drama íntimo rapidamente se expande para uma crítica social de amplitude continental, evidenciando um país devastado, não apenas por fenômenos climáticos, mas também por desconfianças internas, escassez de recursos e uma luta constante entre o “nós” e o “cada um por si“.
A neve, metáfora visual potente e constante, encobre verdades duras: há mais do que uma tragédia natural em curso. Há interesses escusos, forças maiores agindo nas sombras, e um povo que precisa lutar não apenas contra o ambiente, mas entre si. Ao desconfiar da natureza do evento, os personagens mergulham em uma busca por explicações — e respostas nunca vêm fácil.

Visualmente impactante, a série aposta em efeitos práticos bem dosados e um design de produção que valoriza a ambientação real da capital argentina. Com seis episódios intensos, não há espaço para dispersão: cada capítulo traz decisões difíceis, dilemas morais e situações que colocam o espectador contra a parede.
Ricardo Darín, como sempre, domina com presença e entrega. Seu Juan Salvo é vulnerável e firme, humano em sua essência, guiado pelo amor paternal e pela sede de justiça. O elenco secundário, embora com menos brilho midiático, sustenta com eficiência a tensão dramática que percorre toda a narrativa.

O sucesso foi imediato: em menos de uma semana, O Eternauta já figurava no Top 10 da Netflix, mostrando que há público, e muito, para tramas que desafiam convenções e investem em narrativas locais com pegada global. A resposta foi tão positiva que a própria Netflix anunciou, por meio das redes sociais, que uma segunda temporada já está confirmada — uma raridade em tempos de cancelamentos abruptos.
Calma vida, a segunda temporada de O Eternauta está confirmadíssima. Em breve 👀❄️🩸 pic.twitter.com/dtJaYdvxeg
— netflixbrasil (@NetflixBrasil) May 6, 2025
Mais do que entretenimento, a série reabre discussões políticas e culturais para um público que talvez não conheça a origem da história: o quadrinho homônimo de Héctor Germán Oesterheld e Francisco Solano López, obra-prima publicada originalmente nos anos 1950 e ícone da resistência durante a ditadura argentina. Ao atualizar essa narrativa, a Netflix resgata também um capítulo doloroso da América Latina e o reapresenta a uma nova geração.

O Eternauta é, acima de tudo, sobre coletividade. Num mundo em que o individualismo impera, a série mostra que, para seguir adiante, será preciso confiar, dividir e resistir. E talvez esse seja seu maior triunfo: nos lembrar, mesmo congelados de medo, que ninguém se salva sozinho.