Não existe ‘fome pra valer’ no Brasil, afirma Bolsonaro em podcast de fisiculturismo; vídeo

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Bolsonaro no Ironberg Podcast __ Foto: Reprodução
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  • Post publicado:27 de agosto de 2022

O presidente Jair Bolsonaro (PL) declarou, na noite desta sexta-feira, que não existe “fome pra valer” no Brasil. A afirmação ocorreu durante uma entrevista concedida ao Ironberg Podcast, do professor de educação física e atleta de fisiculturismo Renato Cariani. Mais cedo, Bolsonaro já havia afirmado, em participação no programa “Pânico”, que não se vê, no país, pessoas “pedindo pão no caixa da padaria”.

“Fome no Brasil? Fome pra valer. Não existe da forma como é falado. O que é a extrema pobreza? É você ganhar até 1,9 dólares por dia. Isso dá R$ 10. O Auxílio Brasil são R$ 20 por dia. Então, quem por ventura está no mapa da fome, pode se cadastrar e vai receber. Não tem fila. São 20 milhões de famílias que ganham isso aí, afirmou o presidente”.

De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgado em junho, 33,1 milhões de brasileiros passam fome atualmente, patamar equivalente ao de três décadas atrás. O mesmo levantamento apontou que 125,2 milhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar — ou seja, não têm acesso pleno e regular aos alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais. O número corresponde a mais da metade (58,7%) da população do país.

Bolsonaro, porém, também afirmou no podcast que “esse discurso de 30 milhões passando fome não é verdade”. O presidente levantou suspeitas sobre o estudo que revelou o número de famintos e alegou, sem apresentar provas, que ele teria sido elaborado por “pessoas que vendem mentiras do Brasil”.

“Se eu falar pra você que não tem fome no Brasil, amanhã o pessoal esculacha comigo na imprensa. Mas eles não sabem a realidade. Se existe gente faminta no Brasil ou não. O que a gente pode dizer: se a gente for em qualquer padaria, aqui, não tem ninguém ali pedindo pra você comprar um pão pra ele. Isso não existe. Eu falando isso estou perdendo votos, mas a verdade a gente não pode deixar de dizer. E temos um programa pra isso” discorreu Bolsonaro, voltando, em seguida, a citar dados sobre o Auxílio Brasil.

Mais cedo, durante participação no programa “Pânico”, o presidente já havia recorrido a uma metáfora semelhante para minimizar o problema da fome no país. A fala ocorreu em meio a uma resposta de Bolsonaro sobre uma declaração da senadora Simone Tebet (MDB), sua adversária na disputa pela Presidência, na qual ela lembrou o número de 33 milhões de brasileiros famintos.

— Essa senadora aí falou besteira. Gente passa mal? Sim, passa mal no Brasil. Alguém já viu alguém pedindo um pão no caixa da padaria? Você não vê, pô. Até no interior. Tem gente que passa mal? Tem gente que passa mal, sim. Mas quem porventura está na linha da pobreza, passando fome, sim, deve ter gente que passa fome, e só — afirmou o presidente durante a entrevista.

‘Declarações totalmente ignorantes’

Há ainda outros estudos que tratam sobre a fome no Brasil. Embora os números não sejam idênticos, todos descrevem o mesmo cenário: o problema vem avançando nos últimos anos. Em 2021, de acordo com o “Mapa da Nova Pobreza”, divulgado pela FGV Social em julho deste ano, mais de 62 milhões de brasileiros, ou 29,6% da população, tinham renda per capita mensal de até R$ 497, equivalente a R$ 16,50 por dia, A pesquisa mostrou que, em dois anos (2019 a 2021), 9,6 milhões de pessoas tiveram sua renda comprometida e ingressaram no grupo de brasileiros que vivem em situação de pobreza.

Já o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2022”, elaborado por cinco agências da Organização das Nações Unida (ONU) e também publicado em julho último, revelou que a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou sua família, durante algum período ao longos dos 12 meses anteriores, subiu de 30%, em 2019, para 36% em 2021, patamar recorde da série histórica iniciada em 2006. Foi também a primeira vez em que o nível de insegurança alimentar no Brasil superou a média mundial (35%).

Para Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, as estatísticas reforçam que o problema da fome no Brasil passa pelo pior cenário da história, na contramão do que foi dito pelo presidente em entrevistas nesta sexta-feira. Para o advogado, as declarações de Bolsonaro são “totalmente ignorantes” por “não compreender a realidade da insegurança alimentar no país”.

— A gente, da Ação da Cidadania, acabou de fazer uma visita in loco em diversos estados do Nordeste, e o cenário é de dezenas de milhares de pessoas em uma situação absolutamente assustadora — destaca Afonso.

O advogado frisa ainda que 15% da população do Rio de Janeiro, estado pelo qual Bolsonaro iniciou a carreira política e se elegeu sucessivas vezes, vive em situação de fome:

— Talvez indo do aeroporto para o Vivendas da Barra (condomínio onde fica a casa do presidente na capital) e, de lá, para Brasília, realmente talvez ele não veja fome. Mas se entrar em comunidades, comunidades quilombolas e ribeirinhas, ele vai ver.

Auxílio Brasil deixa 8 milhões de fora

Embora Bolsonaro tenha afirmado que “quem por ventura está no mapa da fome pode se cadastrar” para receber o Auxílio Brasil, o GLOBO mostrou, em reportagem publicada este mês, que milhões de brasileiros estão de fora do benefício devido a questões como critério de renda desatualizado e cadastro difícil. Há ao menos 8,3 milhões de “invisíveis”, que teriam direito a requerer os R$ 600 se houvesse correção integral do valor que marca a linha da pobreza pela inflação desde 2004, quando foi institucionalizado o Bolsa Família.

Cálculos feitos a pedido do GLOBO pelos economistas Alysson Portella e Sergio Firpo, do Insper, mostraram que as atuais linhas de pobreza (renda per capita familiar de R$ 210 mensais) e de extrema pobreza (R$ 105) estão defasadas. Em janeiro de 2004, quando o Bolsa Família foi instituído, eram, respectivamente, R$ 100 e R$ 50. Com a reposição inflacionária pelo IPCA no período, as linhas saltariam para R$ 287 e R$ 143, respectivamente.

A defasagem da linha de pobreza, contudo, é só uma das causas para o grande contingente de brasileiros pobres “invisíveis” ao Auxílio Brasil. Especialistas atribuem o problema à formulação improvisada e de última hora do programa, que atendeu mais aos planos eleitorais de Bolsonaro, que busca a reeleição, do que a critérios técnicos. O número real de pessoas que teriam direito ao benefício, mas estão à margem do sistema, é de difícil mensuração.

Um dos sinais da ineficiência é a corrida aos serviços de assistência social para entrar no programa. Porém, com o aumento da demanda nos Centro de Referência de Assistência Social (Cras) em meio à lenta recuperação do mercado de trabalho, prefeituras têm menor capacidade de identificar famílias vulneráveis por meio da chamada busca ativa.

Outro problema é que, sem documentos, a população em situação de rua muitas vezes também não tem como pedir o benefício. Kiko Afonso, da Ação da Cidadania, reforça que o acesso ao Auxílio Brasil “não é trivial”.

— Eles enfrentam problemas de cadastramento. Além disso, os Cras foram totalmente desmobilizados no governo Bolsonaro, e o número de profissionais não consegue dar conta da demanda que chega. Eles pararam totalmente de fazer a busca ativa (procurar presencialmente pessoas que integram o público-alvo do benefício). Esse cadastro não só está desatualizado, como não dá para identificar se as famílias que estão recebendo o benefício realmente são as que precisam receber — destaca.

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