A cannabis sativa, a popular maconha, vive um momento singular após décadas de total proibição no Brasil.
Por um lado, cada vez mais decisões judiciais têm liberado seu cultivo e consumo medicinal, proporcionando tratamento para diversas doenças e aquecendo um mercado que já movimenta R$ 130 milhões por ano.
Por outro, muitos brasileiros são detidos, processados e condenados por terem sido pegos com ínfimas quantidades da planta, como um ex-militar que foi preso com 0,3 grama e agora pode ser sentenciado a cinco anos de cadeia.
Hoje, por volta de mil pessoas possuem habeas corpus preventivo que permitem o cultivo e o consumo da cannabis para tratar doenças como autismo, epilepsia, Alzheimer, fibromialgia, depressão, ansiedade e enxaqueca crônica.
Além de 5.500 médicos que prescrevem a planta no país, há algumas associações de pacientes com permissão para fornecer medicamentos para seus associados — a maior delas, a Abrace Esperança, da Paraíba, tem 28 mil inscritos.
Já a Anvisa autoriza a importação e comercialização de 18 produtos à base de cannabis, todos vendidos em farmácias.
Esse precedente fez florescer o mercado legalizado nos últimos anos: médicos, farmacêuticas, start-ups, sites especializados, consultorias, aceleradoras de empresas, agências de emprego e fundos de investimentos de grande bancos colocam e ganham dinheiro no setor.
Já a venda da planta para uso recreativo se enquadra no crime de tráfico de drogas.
Crescimento do setor
Um estudo da Kaya Mind, consultoria que há um ano e meio produz dados sobre o mercado canábico brasileiro, estima que apenas o setor de medicamentos gerou R$ 130 milhões no ano passado no país – estima-se que no ano passado o setor cresceu 124%.
Segundo a pesquisa, o valor é subdimensionado, pois leva em conta só medicamentos auditados pela Anvisa, o que representa uma pequena parte dos produtos vendidos em território nacional.
A consultoria também aponta que o Brasil tem potencial de criar 328 mil empregos formais e informais caso haja uma regulamentação que inclua o uso medicinal, industrial e adulto (recreativo) da planta. Em quatro anos, o setor geraria R$ 26,1 bilhões à economia do país, estima a empresa.
“A gente costuma dizer que a maconha hoje vive um momento esquizofrênico. Como pode existir um mercado legal com produtos vendidos na farmácia ao mesmo tempo em milhares de pessoas ainda são encarceradas por causa da mesma planta? Do lado do uso adulto, existe um enorme mercado legal, que gera renda e empregos, mas o principal produto é proibido”, diz Maria Eugenia Riscala, CEO da Kaya Mind.
‘Farelo’ de maconha
Um recente caso ilustra esse cenário de proibição: um ex-soldado da Força Aérea Brasileira (FAB) pode ser condenado a cinco anos de prisão depois de ter sido pego com 0,3 grama de maconha no quartel.
Segundo a denúncia do Ministério Público Militar (MPM), a posse da droga “gera efeito negativo no moral e na autoestima da corporação, bem como no próprio conceito social das Forças Armadas.”
O caso aconteceu no ano passado, quando João (nome fictício), de 21 anos, deixava o quartel em uma cidade da região Sul.
“Eles usaram cães farejadores e balançaram minha mochila. Caiu um pouco de maconha, mas era farelo. Não dava para fumar”, diz.
Segundo relatórios de órgãos de saúde e do Ministério Público, um cigarro de maconha costuma ter entre 0,5 e 1,5 grama no Brasil.
João conta que usava cannabis para melhorar sua ansiedade e depressão crônicas. Nos últimos anos, a Justiça já deu decisões liberando o plantio por pessoas que sofrem com essas condições, mas o ex-militar não tinha essa autorização.
“Na época eu tinha até dado um tempo. Mas sobrou o farelo na mochila, eu nem sabia que estava lá”.
Preso em flagrante, ele ficou em uma cela por algumas horas. Quando voltou ao trabalho, diz, passou a ser evitado por colegas e superiores.
“Nunca fumei no trabalho, sempre me dediquei muito à FAB. Mas fui totalmente excluído. Meus amigos passaram a me evitar para não serem vistos com um ‘maconheiro’. Essa situação mexeu muito comigo, mexeu com minha cabeça.”
Ele ainda ficou alguns meses na FAB, mas deixou o posto no final do ano. O processo, porém, continuou e o jovem pode ser condenado de um a cinco anos de prisão.
“Minha depressão piorou muito depois desse episódio. Fiquei meses sem conseguir sair de casa, sem falar com ninguém, desenvolvi alopecia e perdi todos os pelos da sobrancelha. Só estou conseguindo me recuperar agora”, diz.
João foi enquadrado no artigo 290 do Decreto Lei nº 1.001, de outubro de 1969. O código – da época da ditadura – determina que qualquer militar pego com drogas nas instalações pode ser condenado de um a cinco anos de prisão. Inicialmente, um juiz de primeira instância decidiu não processar o jovem. Mas a promotoria recorreu, e a denúncia foi aceita pelo Superior Tribunal Militar (STM).
Para Rodrigo Tejada, da Defensoria Pública da União (DPU), que defende João no processo, o episódio deveria ser enquadrado no princípio da insignificância, quando o resultado do delito não causa nenhum dano à vítima – nesse caso, a vítima seriam as Forças Armadas. “Não conseguiria sequer usar a droga, porque não tinha nem como produzir um cigarro com aquela quantidade”, diz.
Segundo Tejada, que costuma defender soldados pegos com drogas, valores como a hierarquia e disciplina contam mais nas condenações do que a quantidade apreendida.
“Há sentido no argumento das Forças Armadas de que não seria aceitável um soldado trabalhar sob efeito de drogas, mas na maioria dos casos não é isso. São jovens pegos depois de revistas, com pequenas quantidades de maconha, com cigarros que eles esquecem na bolsa”, diz.
O caso de João é bastante semelhante ao de outro militar condenado a um ano de prisão depois de ter sido pego no quartel com 0,02 grama de cannabis, em 2012. Posteriormente, em 2017, ele foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
À época, os ministros entenderam que não havia crime porque a quantidade era tão irrisória que não poderia ser utilizada. “Não dá nem para acender”, disse o ministro Luís Roberto Barroso.
O processo de João também chegou ao STF, mas a Corte entendeu que cabe à Justiça Militar julgar o caso.
O que é tráfico?
Fora do âmbito militar, muitos brasileiros são processados por tráfico de drogas após serem pegos com pequenas quantidades de maconha – e isso acontece com outras substâncias também, como crack e cocaína.
Em alguns países, como o Reino Unido, usuários e pequenos traficantes não são punidos criminalmente porque entende-se que esse tipo de medida não gera efeito negativo no narcotráfico e ajuda a superlotar as prisões.
No Brasil, o tráfico é caracterizado mais pelas circunstâncias da prisão do que pela quantidade apreendida.
Em 2006, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Congresso aprovou uma nova Lei de Drogas, que endurecia penas para traficantes (mínima de 5 anos de prisão) e retirava punições a usuários. A lei cita 18 verbos que definem o crime: importar, remeter, preparar, produzir, vender, expor à venda, oferecer, ministrar, entre outros.
Segundo especialistas em direito penal, a legislação não define critérios objetivos para diferenciar tráfico de uso pessoal, como a quantidade portada. Na prática, esse problema fez com que a principal prova para condenar alguém por tráfico seja o testemunho dos policiais que participaram do flagrante.
Não existem dados oficiais sobre a quantidade média de maconha (ou de outras drogas) utilizada pela Justiça para condenações por tráfico. Há apenas pesquisas de amostragem: um estudo do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, por exemplo, apontou que, em 2014, o volume de maconha apreendido não passou de seis gramas em 50% das 24.037 prisões em flagrante analisadas. Em 75% dos casos, o peso máximo de cannabis apreendida não passava de 42,6 gramas.
“A aplicação da lei é errática e nebulosa. Conta muito o local da prisão e a classe econômica da pessoa. Se ela for de classe média alta, morador do Leblon (bairro nobre do Rio), a polícia e a Justiça muito provavelmente vão considerá-la usuária”, diz Emilio Figueiredo, advogado da Rede Reforma, grupo que atua em processos de habeas corpus preventivos para plantio. “Mas se ela for negra, presa em uma favela, será condenada porque se pressupõe que ali é um local de tráfico, logo, ela é uma traficante.”
Um recente caso, que chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ilustra esse cenário. Um vendedor de frutas foi detido em flagrante com 24 gramas de maconha ao lado de uma rodoviária em Sergipe – acabou condenado na primeira instância a oito anos de prisão em regime fechado.
Os agentes disseram que o terminal é conhecido como ponto de venda de drogas. No local, perceberam uma “movimentação estranha” e abordaram cinco homens. Um deles, o comerciante, tinha 24 gramas de cannabis e R$ 51 no bolso.
O rapaz afirmou que a droga era para consumo próprio, e sua defesa argumentou que não havia provas suficientes contra ele. Mas o juiz considerou como principal indício o depoimento dos policiais, pois, como servidores do Estado, os agentes gozam de fé pública e seus atos presumem-se legais até prova em contrário.
“Faz-se necessário ressaltar que, em delitos como os de tráfico de drogas, o depoimento de policiais constitui prova de suma importância para embasar a condenação”, escreveu o magistrado.
Os recursos da defensoria chegaram ao STJ, que anulou a condenação. Mas o comerciante respondeu ao processo preso em uma cadeia de Sergipe. Para o ministro Antonio Saldanha Palheiro, que o absolveu, “a crise do sistema prisional brasileiro, o terceiro maior do mundo, recomenda ponderação em condenações como essa”.
Encarceramento em massa
A lei de drogas de 2006 é apontada por defensores e especialistas em direito penal como um acelerador do encarceramento no Brasil.
Em 2005, antes da legislação, 14% dos presos foram condenados por crimes relacionados ao tráfico, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen. Já em 2019, o delito representava 27,4% – entre as mulheres, esse índice chega a 54,9% do total.
Em 2005, havia 296.919 pessoas encarceradas no país. Em 2019, eram 773.151 detentos, alta de 160%. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dois em cada três presos são pessoas negras.
Para Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor público federal com atuação no STF, a legislação sobre drogas no Brasil é “uma máquina de moer pessoas”, principalmente jovens, pobres e negros.
“Pequenas quantidades de substâncias ilícitas geram penas muito elevadas. Como o Brasil tem muita dificuldade de investigar os crimes, a Justiça usa elementos que não dizem muita coisa. Se a droga for encontrada em porções, por exemplo, isso vira um argumento para a condenação, porque pressupõe-se de que isso tem relação com o tráfico. Se ela for presa perto de uma escola, a pena aumenta, mas não existe um parâmetro de distância que deve ser considerada. A lei de drogas é muito aberta e pouco objetiva, tudo pesa contra o acusado”, diz.
Legalização
Não há perspectiva de legalização da cannabis no Brasil como vem ocorrendo em países como Estados Unidos, Canadá e Uruguai.
No ano passado, uma comissão da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 399/2015, que regulamenta o plantio para fins medicinais, mas não há previsão de votação em plenário. Já um julgamento sobre a descriminalização do porte para uso pessoal está parado no STF desde 2015, também sem data de retomada.
Para Maria Eugenia Riscala, da consultoria Kaya Mind, a legalização “é inevitável e vai acontecer pela pressão econômica”. “Há um movimento grande no mundo nesse sentido. No Brasil há muita gente se perguntando: por que estamos perdendo esse dinheiro para facções criminosas? Hoje há filhos dando cannabis para o pai com Alzheimer, ao mesmo tempo em que a Justiça prende um jovem negro por portar 10 gramas.”
O empresário Fabrizio Postiglione, CEO da farmacêutica Remederi, concorda com a avaliação, mas acredita que o uso adulto será o último contemplado.
“A medicina e a sociedade já entendem que os benefícios são maiores que os danos. O bem-estar e a saúde virão na frente, e depois o uso recreativo”, afirma. Sua empresa, criada em 2019 com 20 funcionários, usa cannabis plantada nos Estados Unidos, onde produz os medicamentos, e depois importa ao Brasil. “Nosso plano é futuramente cultivar no país, se houver condições para isso”, diz.
Já Luana Malheiro, coordenadora da Plataforma Brasileira de Política sobre Drogas, diz que uma possível legalização deve contemplar demandas dos mais pobres, além de criar mecanismos de reparação a comunidades historicamente prejudicadas pelo proibicionismo, como a população negra.
“Primeiro temos de entender que a proibição causa crimes e mortes. Se acontecer, a legalização pode abrir portas para discutir o uso de drogas e a cidadania das pessoas que sofrem com uso problemático, com serviços de proteção e saúde. Outro ponto é pensar como vamos reparar as comunidades afetadas pela proibição”, diz.