Cerveja não tem vez em Ruanda: leite é o hit nos bares e encontros

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  • Post publicado:11 de outubro de 2021
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KIGALI, Ruanda — Com o sol escaldando as colinas da capital de Ruanda, Kigali, em uma tarde recente, um mototaxista, duas mulheres usando lenços iguais na cabeça e um adolescente usando fones de ouvido visitaram separadamente um pequeno quiosque de rua para provar a única bebida disponível: leite.

“Adoro leite”, disse Jean Bosco Nshimyemukiza, o mototaxista, bebendo de um copo grande de leite fresco que deixou um bigode branco no seu lábio superior. “O leite acalma”, disse ele, sorrindo. “Reduz o estresse e tem propriedades cicatrizantes.”

Nshimyemukiza e os demais estavam sentados em uma leiteria, igual a outras centenas encontradas na capital, Kigali, e distribuídas por este pequeno país de 12 milhões de habitantes na África central. Em Ruanda, o leite é uma das bebidas preferidas, e os bares que o servem estão entre os lugares mais procurados ara se passar o tempo, combinando os prazeres da bebida em si com uma atmosfera comunitária.

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Ruandenses se reúnem em leiteria na capital, Kigali (Foto: Jacques Nkinzingabo/The New York Times)

Homens e mulheres de todas as idades sentam-se nos bancos e cadeiras de plástico ao longo do dia, copos diante de si, bebendo litros e mais litros de leite fresco ou fermentado, semelhante a um iogurte, conhecido localmente como ikivuguto.

Alguns clientes pedem o leite quente, enquanto outros o preferem frio. Respeitando uma antiga tradição segundo a qual o copo deve ser terminado logo, alguns bebem tudo de uma vez, enquanto outros bebericam o leite enquanto saboreiam bolos, chapatis e bananas.

Independentemente de suas diferenças na hora de pedir o leite, todos aproveitam o momento para relaxar e socializar. Mas o principal é mesmo o leite, que eles bebem em grandes quantidades.

“Venho aqui quando quero relaxar, e também quando quero pensar no meu futuro”, disse Nshimyemukiza, acrescentando que costuma beber pelo menos três litros de leite por dia. “Quando bebemos leite, a cabeça e as ideias ficam no lugar.”

Se os bares de leite surgiram por toda parte na década mais recente, a bebida que eles oferecem há muito faz parte da cultura e da história do país, bem como da sua identidade moderna e sua economia.

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Homem bebe copo de leite em leiteria de Kigali, em Ruanda (Foto: Jacques Nkinzingabo/The New York Times)

Ao longo dos séculos, as vacas foram uma fonte de riqueza e status, o bem mais valioso a ser legado a um amigo ou parente. Até a realeza anisava pelo acesso fácil ao leite. Durante o Reino de Ruanda, que durou séculos até a deposição do último rei em 1961, o leite das vacas era armazenado em recipientes de madeira com tampas cônicas de tecido logo atrás do palácio real.

As vacas eram consideradas tão valiosas que eram incluídas nos nomes das crianças — Munganyinka (valioso como uma vaca) ou Inyamibwa (linda vaca) — e nas danças tradicionais, em que as mulheres erguem as mãos para imitar os chifres gigantes das vacas Ankole.

Em 1994, Ruanda foi palco de um genocídio, durante o qual estima-se que 800.000 pessoas tenham sido massacradas em um intervalo de 100 dias. A maioria dos mortos era da etnia tutsi, historicamente associada aos rebanhos e dona de muitas cabeças de gado.

As famílias de pastores e suas vacas se tornaram alvo de extremistas da etnia hutu que em geral eram agricultores, de acordo com o Dr. Maurice Mugabowagahunde, pesquisador de história e antropologia da Academia do Patrimônio Cultural de Ruanda.

Com o país se recuperando do genocídio, o governo de Ruanda se voltou novamente para as vacas como forma de expandir a economia e combater a desnutrição.

Em 2006, o presidente Paul Kagame apresentou o programa Girinka, que busca dar a cada família pobre uma vaca. Até o momento, o programa já distribuiu mais de 380.000 vacas em todo o país, de acordo com o ministério da agricultura e dos recursos animais, graças a contribuições feitas por empresas privadas, agências de auxílio e lideranças internacionais como o primeiro-ministro Narendra Modi, da Índia.

O programa (Girinka significa “que você tenha uma vaca” no idioma local) é um dos projetos de desenvolvimento que garantiram a Kagame apoio em todo o país, mesmo diante da sua tolerância zero em relação aos rivais.

Com o aumento da produção de leite neste país sem acesso ao mar, o mesmo ocorreu com o número de pessoas que se mudaram para áreas urbanas em busca de ensino e emprego. E assim nasceram as leiterias, onde os produtores vendiam seu excedente e os fregueses bebiam quantidades copiosas de leite para se lembrarem de casa. A maioria dos bares de leite fica em Kigali, a cidade mais populosa do país, com 1,2 milhão de habitantes.

Steven Muvunyi cresceu com nove irmãos no distrito de Rubavu, oeste do país. Depois de se mudar para Kigali para frequentar a universidade, ele disse que ficou com saudade do interior, onde ordenhava vacas e bebia leite sem restrições.

“Venho às leiterias e sou tomado pela nostalgia e as lembranças da infância”, disse ele em uma noite no fim de setembro, enquanto bebia um grande copo de leite fresco e quente no centro de Kigali.

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Leite sendo processado em uma leiteria de Nyanza, Ruanda (Foto: Jacques Nkinzingabo/The New York Times)

Enquanto se sentava ao bar, Muvunyi, 29 anos, que trabalha no incipiente setor de tecnologia de Ruanda, mostrou fotos do filho de 2 anos olhando para ele enquanto bebia um copo de leite na fazenda dos pais. Ele disse se preocupar com a possibilidade de as crianças nas cidades crescerem amis distantes da cultura de laticínios no país, por causa do acesso fácil ao leite pasteurizado nos supermercados.

“Quero ensinar desde cedo aos meus filhos o valor do leite e das vacas”, disse ele.

Apesar de atraentes, as leiteiras e o setor de laticínios em geral enfrentaram crescentes desafios nos anos mais recentes.

A pandemia do coronavírus afetou muito a indústria, principalmente porque Ruanda adotou um dos lockdowns mais rigorosos da África. Com as autoridades impondo toques que recolher noturnos, fechando os mercados e proibindo a circulação entre cidades e distritos, a economia foi afetada, e Ruanda entrou em recessão.

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Vacas em uma fazenda no sul de Ruanda Foto: Jacques Nkinzingabo/The New York Times

Mais da metade das pequenas e médias produtoras de laticínios fechou durante o lockdown, de acordo com o governo. Três das cinco maiores processadoras de leite do país estavam funcionando entre 21% e 46% da sua capacidade.

As restrições foram sentidas especialmente pelas leiterias menores e independentes. Nos anos mais recentes, muitos bares de leite menores tinham fechado conforme as redes corporativas consolidavam seu domínio neste mercado.

A mudança climática também trouxe desafios. Nos anos mais recentes, secas recorrentes deixaram milhares de pessoas sem alimento, e s vacas sem ração ou água. Em todo o país surgiram focos de escassez de leite.

As condições climáticas adversas nos quatro meses mais recentes também causaram um aumento no preço do leite. Em média, o litro de leite nas lojas de Kigali passou de 500 francos (US$ 0,50) para 700 francos (US$ 0,70).

Para Illuminee Kayitesi, dona de uma leiteria no bairro de Nyamirambo, em Kigali, os lockdowns do ano passado afetaram sua capacidade de pagar o aluguel, os salários dos funcionários e a rentabilidade, dificultando o sustento da sua família. A recente escassez de leite significou que, na maioria dos dias, ela não conseguia manter a geladeira cheia.

Enquanto o movimento é retomado lentamente conforme a população é vacinada e o país reabre, “tudo continua difícil”, disse ela. Mas, independentemente das circunstâncias, os ruandenses dizem que o leite veio para ficar.

No ano passado, durante a pandemia, Ngabo Alexis Karegeya começou a compartilhar imagens e vídeos no Twitter a respeito da fixação dos ruandenses com as vacas e o leite, chamando a atenção em todo o país. Karegeya se formou na universidade este ano com diploma em administração de negócios, mas ainda lembra com carinho da época de menino, quando cuidava de vacas. Publicou no Twitter uma foto de si vestido para a formatura com a legenda “vaqueiro diplomado”.

“Os ruandenses amam as vacas e o leite”, disse Karegeya, dono de cinco vacas nas verdejantes colinas das terras de sua família no oeste de Ruanda. Ele bebe três litros de leite por dia. “As leiterias nos aproximam”, disse ele. “E voltaremos a esses bares para beber mais leite.”

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