“É o meu lençol, é o cobertor / É o que me aquece sem me dar calor / Se eu não tenho o meu amor / Eu tenho a minha dor”.
Os versos famosos de Marisa Monte e Arnaldo Antunes, em De mais ninguém (1994), bem que poderiam ajudar a traduzir o direito à dor e a todos os processos que envolvem o luto, que ganha dimensão inédita para esta geração por conta da pandemia da covid-19. Especialistas ouvidas pela Agência Brasil explicam que a emergência sanitária gerou diferentes consequências que ampliam as perdas, como a impossibilidade dos ritos de despedida e de uma retomada da vida como era antes.
“Precisam de um descanso / Precisam de um remanso / Precisam de um sono / Que os torne refeitos”.
Os versos de Gonzaguinha são lembrados pela psicóloga e pesquisadora Milena Câmara, que trabalha na cidade de Natal (RN). Ela é uma das brasileiras que atuam no grupo de estudos International Working Group on Death, Dying and Bereavement (grupo de trabalho internacional sobre morte, o morrer e o luto) e coordenou uma pesquisa sobre o impacto psicológico da morte para trabalhadores de cemitérios.
Milena Câmara entende que o cenário atual significa um grande desafio emocional e psíquico. “Em um contexto como o de agora, há um rompimento com o cenário de antes. Todos precisamos de uma reestruturação desse mundo presumido e gerar, aos poucos, uma nova forma de se relacionar com a pessoa que morreu. A morte acaba com a forma, mas não acaba com o amor”.
Para as estudiosas ouvidas pela reportagem, diante de uma ruptura abrupta com a vida que conhecíamos, além das dúvidas sobre um “futuro esperado” – ambas geradas pela pandemia -, a sociedade deve prezar pelo apoio, respeito mútuo e ouvidos solidários, que são fundamentais para ajudar pessoas que perderam amores de vida.
“Eu uso a metáfora do tsunami para falar da pandemia. É uma onda que está passando e a gente está embaixo dela e não sabe quando vai acabar”, compara Elaine Alves, professora da Universidade de São Paulo (USP), pesquisadora em emergências e desastres.
A especialista avalia que a pandemia é um desastre diferente daqueles episódios que os pesquisadores estão acostumados. “Normalmente, no desastre, o outro não é um risco para nós. Nessa situação, o outro passou a ser um risco. Passamos a ter medo do outro”.
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O tempo do luto
Na obra “Sobre a morte e o morrer“, a psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross formulou cinco fases do luto diante da observação da reação psíquica de pacientes em estado terminal: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Conforme considera Elaine, essas fases podem ocorrer simultaneamente. “Ao mesmo tempo que você nega, você tem raiva. E não tem um tempo de duração preciso”.
A pesquisadora Milena Câmara explica que o tempo não faz nada sozinho para efeito de reequilíbrio. Os processos de luto desgastam e exigem da gente. No meio do caminho, dor, raiva, medo, crenças afetadas… “Os primeiros estudos de luto tratavam sobre possíveis fases que atravessamos na perda. Hoje compreendemos que, na verdade, ocorre um processo de oscilação permanente dos nossos sentidos em dias assim”, avalia.
O sofrimento é parte constante da experiência humana e a dor não pode ser marginalizada, na avaliação das entrevistadas. Essa oscilação entre dor e restauração é um processo saudável que age pelo equilíbrio para os momentos que todos nós passamos, explicam as pesquisadoras.
As características das perdas durante a pandemia de covid-19 são mais difíceis porque ocorrem em cenário de solidão e com apoio social limitado. “Às vezes, não há como receber aquele abraço em que as palavras são desnecessárias. Por isso, nesse caso, há vários fatos complicadores de luto, e podem gerar processo mais prolongado”, alerta Milena Câmara.
“Todos fomos impactados pela pandemia. Costumo dizer que estamos todos em um mesmo oceano, mas em barcos diferentes. As pessoas assimilam as dores de formas diferentes e as consequências aparecem mesmo muito tempo depois. Quem já tem algum transtorno fica mais vulnerável. Outras pessoas podem desenvolver estresse pós-traumático. Por isso, é recomendável que se procure profissionais da área de saúde, como psicólogos e psiquiatras”, diz a neuropsicóloga brasiliense Juliana Gebrim (saiba mais sobre apoio no processo de luto).
O adeus
“E no meio dessa confusão, alguém partiu sem se despedir” (Rubem Braga)
Antes mesmo da mudança dos ritos funerários com a pandemia, Elaine Alves alerta que o Brasil já caminhava para uma espécie de “velório rápido”, na tentativa de diminuir o tempo de sofrimento. Contudo, ela destaca que a dor não desaparece porque não se fala mais sobre a pessoa. Ela defende o máximo de tempo possível para o velório. “A orientação é usar o máximo do tempo. No Brasil, a recomendação é o período máximo de 24 horas se o corpo permitir”. Devido ao novo cenário, Elaine sugere adaptações nos ritos, como o uso de fotografias em corpos que não podem ficar expostos, e da realização constante de videoconferência entre familiares com a pessoa enlutada. “Mas nessas videoconferências deve-se falar abertamente sobre o morto. A pessoa que morreu não precisa sair da nossa vida”.
Nesta segunda (2), as homenagens nos cemitérios brasileiros deverão obedecer às legislações municipais e estaduais, o que inclui a obrigatoriedade do uso de máscaras, alertas contra aglomerações e medição de temperatura no acesso aos espaços públicos. Em São Paulo, maior cidade do país, por exemplo, há 22 cemitérios, que funcionarão entre 7h às 18h. Haverá disponibilização de álcool em gel. As autoridades de saúde reforçam a necessidade de cuidado especial em todo o país, inclusive para o caso de haver celebrações nos espaços.
Por outro lado, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) estimulou, durante a semana, uma campanha para se evitar aglomeração em cemitérios. A proposta é que as pessoas plantem uma árvore como homenagem ao ente falecido e também como forma de cuidar do meio ambiente. Dentro da campanha, a entidade pede que as pessoas tirem uma foto e publiquem no Instagram com a hashtag #CuidarDaSaudade. As imagens vão para o site da CNBB.
Edição: Nathália Mendes