Há cerca de um ano, os holofotes da notícia voltavam-se a Corumbá. Na cidade, o fluxo migratório na fronteira com a Bolívia é algo extremamente comum: Corumbá é porta de entrada de bolivianos que buscam oportunidades no Brasil. Mas, naquela ocasião, o fenômeno ganhava novas e maiores dimensões: desta vez, e de forma inusitada, eram haitianos que buscavam refúgio em território brasileiro e tinham na cidade a principal rota de entrada.
O grupo começou a deixar o Chile principalmente após endurecimento das políticas migratórias, mas também por conta do frio incomum para haitianos. Assim, chegavam ao Brasil com a perspectiva de conseguir apoio de compatriotas, numa espécie de rede na qual havia ajuda mútua entre imigrantes do Haiti.
O problema é que eles simplesmente não conseguiam sair de Corumbá. Aglomeraram-se em centenas, contando com a solidariedade de corumbaenses e de órgãos assistenciais, sem falar uma palavra sequer em português. Naquele mês de julho, o fluxo de haitianos por Corumbá cresceu de forma a haver entre 300 e 400 imigrantes retidos na cidade, sem ter onde comer ou dormir.
A retenção, no caso, ocorreu porque para sair de Corumbá pelos meios tradicionais, como por ônibus, é necessário portar um documento de notificação de entrada no país, expedido pela PF (Polícia Federal). O documento determina ordem de saída do país no prazo de 30 dias a quem não tem visto. Porém, também permite que imigrantes se desloquem dentro do território nacional. Esta era a estratégia: deslocar-se até chegar num dos polos de haitianos, como São Paulo, Chapecó e outras cidades do sul e sudoeste.
Para tanto, era preciso fazer uma perigosa travessia. A diáspora se iniciava na contratação de coiotes – atravessadores que transportavam grupos da fronteira entre o Chile e a Bolívia. Os coiotes proporcionavam a travessia por todo o território do país vizinho, até serem despejados em frente a rodoviária de Corumbá. Mas havia um alto preço.
Haitianos eram sujeitos aos mais variados tipos de violência durante a travessia, de extorsão a roubo, do estupro à morte. Eram alvos fáceis nas mãos de exploradores. Mas, tudo parecia ser válido para chegar ao Brasil, onde boas perspectivas de vida voltavam a florescer.
“A situação continua igual. O fluxo migratório é praticamente igual. O fluxo foi normalizado e assim aquele grupo de centenas de pessoas diminuiu. Eles acabam ocupando menos as vias públicas e acabam passando direto para as vans que fazem o escoamento para Campo Grande e, dai, as demais cidades”, destaca o padre Padre Marco Antonio Ribeiro, da Missão Scalabriniana de Fronteira e do Comitê de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Ribeiro foi o principal articulador de uma rede de solidariedade que envolveu igrejas, hotéis e cidadãos corumbaenses, a fim de proporcionar o mínimo de estrutura aos haitianos, como locais para dormir e uma refeição diária. É ele que também apresenta os novos aspectos envolvendo haitianos. Segundo ele, o a rede migratória que antes recorria a coiotes encontrou uma maneira de fazer a travessia em maior segurança, dentre outras peculiaridades.
Mudanças
Há pouco mais de um ano do “boom” imigratório de haitianos, Corumbá não sofre mais com o represamento destes imigrantes. As notificações de saída são expedidas com agilidade e a maioria dos grupos que diariamente chegam à cidade nem sequer dormem na cidade. Isso foi percebido já em julho de 2018, quando a PF voltou a emitir, com agilidade, as notificações de saída, proporcionando aos imigrantes chegarem a seus destinos finais.
O que se nota presentemente, no entanto, é que há certa retenção em Campo Grande. Se há um ano a Capital era apenas rota de um corredor imigratório, atualmente há diferenças significativas. De Campo Grande, muitos partem para outras regiões. A novidade, porém, é que muitos também ficam: a presença deles é frequentemente percebida no Terminal Rodoviário e em algumas regiões da cidade, como no bairro Rita Vieira, onde há uma grande comunidade de haitianos.
“Antes, eles vinham ao Brasil por Corumbá, ficavam aqui e saiam com a vida resolvida, ou seja, aos destinos finais. Agora, apenas passam por Corumbá e muitos decidem o destino final em Campo Grande. É na Capital que o fluxo está ficando retido. Parece-me ser mais importante estar no Brasil que simplesmente sair do Chile com uma rota bem definida, como era há um ano”, comenta Ribeiro.
A SAS (Secretaria Municipal de Assistência Social) confirma existir uma retenção de haitianos na cidade. Os números indicam a evolução do fluxo migratório, principalmente quando a PF voltou a emitir as notificações de saíde. De maio de 2018 até dezembro de 2019, por exemplo, foram apenas 11 acolhimentos realizados pela Sas. De janeiro a maio, o número saltou para 157.
A gerente da rede de proteção social especial de alta complexidade da SAS, Débora dos Santos Soares, explica que o serviço dispensado é de acolhimento e de orientação aos imigrantes.
“A gente prima pela questão da acolhida, familiar e comunitária. E também fazemos o encaminhamento para a questão documental. Mas também fazemos a abordagem social, que é um serviço 24h, feito pela Seias (Serviço Especializado de Abordagem Social), detalha.
Segundo a gerente, o trabalho consiste não só em receber a demanda espontânea, mas também fazer a “busca ativa” por pessoas em situação de vulnerabilidade – entre as quais estão haitianos. Nesse contexto, o Cetremi (Centro de Triagem e Encaminhamento do Migrante e População de Rua) é um dos recursos oferecidos.
“Lá, eles têm higiene, alimentação, dormitórios e equipe técnica, como psicólogo e assistente social. A gente presta todo esse apoio e em alguns casos até passagem rodoviária. Mas, a maioria dos atendimentos ocorrem no terminal rodoviário. Mas temos notado que muita gente passa pelo terminal e poucos aceitam acolhimento. Parece-nos que aqueles que ficam em Campo Grande já vem com isso definido”, aponta.
Segundo a SAS, os atendimentos na rodoviária foram bem mais expressivos. De maio a dezembro de 2018, logo após o fim da retenção em Corumbá, a SAS prestou um total de 634 a haitianos. De janeiro a maio deste ano, foram 128 atendimentos. O último mês de dezembro foi o com maior número, quando 268 imigrantes receberam qualquer tipo de assistência da SAS.
Os acolhimentos no Cetremi, de maio a dezembro de 2018, foram de 72 haitianos, sendo novembro o mês mais expressivo. De janeiro a maio, foram acolhidos 48 haitianos na unidade. A pasta não dispõe de dados de quantos ficam na cidade.
Nova rede
Em julho de 2018, o professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) em Corumbá, Marco Aurélio Machado de Oliveira, revelou que haitianos desenvolveram uma espécie de rede para facilitar a migração. A rede, no caso, seria basicamente o compartilhamento de informações e de contatos necessários para que cada haitiano chegasse a seu destino final.
“Essas pessoas não fazem uso e abuso de drogas ilegais, não há óbitos registrados em Corumbá, não há uma mulher grávida que tenha abortado. Não há uma tragédia, ainda, que ainda não ocorreu não porque as autoridades evitaram, mas porque há um mínimo de organização da rede deles”, detalhou Oliveira ao Jornal Midiamax em julho de 2018.
Para Oliveira, também há outros aspectos que promovem certa estabilidade ao fluxo migratório, como a forte presença de mulheres entre os haitianos. “Onde há fortes presenças femininas, há menos incidência de violência, de uso e abuso de drogas ilegais, de venda de filhos e de tráfico de pessoas. Acredito que esse seja um dos elementos que evita que tragédias aconteçam. Também estou convencido de que onde há elos familiares no transcurso do fluxo, os riscos são mais calculados por eles”, destacou o pesquisador.
Há uma mudança positiva na rede de haitianos. Atualmente, a travessia é descrita como um pouco mais tranquila. Isso porque os próprios haitianos articulam a viagem. Eles teriam se tornado coiotes, por assim dizer, mas as histórias de extorsão e roubo dão lugar a relatos de travessias seguras.
“De Corumbá mesmo eles já saem em uma van com destino a Campo Grande. E na cidade é que eles decidem para onde vão, mas também ficam. Existe uma comunidade forte na cidade, existe acolhimento. A Capital virou destino final, como foi há muitos anos, o que pode ser positivo”, destaca o padre Ribeiro.